Para Glória Diógenes, poder público deve horizontalizar políticas para jovens e apoiar ações existentes

A equipe do Instituto Oca conversou com a socióloga Glória Diógenes, que coordenou a pesquisa “Eles dizem não ao não – Um estudo sobre a geração N”, para entender o contexto no qual estão inseridos milhares de jovens que são invisibilizados nas políticas públicas: eles não estudam, não trabalham e já desistiram até de procurar ocupação, mas a verdade é que esses meninos e meninas não estão parados; continuam a se movimentar dentro da dinâmica das periferias urbanas.

Instituto OCA: Um dos gargalos na formulação de políticas de segurança pública, numa perspectiva intersetorial, é a imprecisão de informações relativas à violência. Como a pesquisa sobre a geração N pode contribuir para o desenvolvimento de políticas voltadas às juventudes, especialmente as mais vulneráveis?

Glória Diógenes: A violência não é só algo que não tem sido acompanhado de uma maneira precisa em pesquisas, mas também é muito difusa. A gente perceber, identificar cenas de violência, de violação de direitos e, ao mesmo tempo, essa identificação ser transformada em números fidedignos é uma tarefa muito árdua. Primeiro porque a violência estampa, expõe todas as falhas e fissuras do Estado, do Governo, da própria política de segurança pública. Eu dizia no meu livro Cartografias da Cultura e da Violência que a violência é a vitrine das tensões sociais, ela é a face mais visível, mais gritante de uma dinâmica social. Esses gargalos e essa imprecisão de informações relativas à violência se devem a esses fatores. O primeiro deles é por se tratar de um espaço, de um acontecimento revelador das fissuras e contradições das políticas de Estado. A violência é como se expressasse as contradições do próprio Estado, como se o Governo que deveria representar todos e todas nele ficasse expresso pela repressão, pelas injustiças. E na aplicação da lei fica claro o caráter de classe do Estado. Quem está no Estado está defendendo uma classe em detrimento de outras. Nem sempre há uma transparência nesses dados. E, quando se trata da pesquisa da geração N, ela não tem a intenção de ser generalizante ou tomar para si a verdade de todos os jovens do Brasil, a denominada nem-nem-nem. Rompemos com essa perspectiva, eles dizem não ao não, ao não que é imposto a eles, a falta de acesso às políticas públicas, ao não da não compreensão das peculiaridades do que é ser jovem na periferia, do que é ser jovem diante de um sistema que pouco absorve essas demandas e tem uma noção mais qualificada dos fazeres e demandas juvenis. A pesquisa da geração N é interessante, pois toma o Grande Bom Jardim como caso exemplar, ele representa boa parte de bairros, comunidades ou configurações de bairros que se encontram com baixo IDH e comportam índices de violações de direitos de muitos jovens fora da escola e do trabalho. O que interessa é que temos aí uma parte qualitativa dessa pesquisa, não temos só os aspectos quantitativos. Na pesquisa a gente expõe, faz emergir as razões, os porquês, quais são os destinos, as encruzilhadas, o feixe de outras possibilidades que aparecem ou se fazem impor para jovens que se sentem muitas vezes excluídos da escola porque são jovens diferenciados, às vezes estigmatizados nas escolas. Nós podemos traçar um mapa ou conjunto de fatores políticos subjetivos que traduzem as falas desses jovens muitas vezes silenciadas por eles mesmos, mas muitas vezes não escutadas e que podem muito propiciar a construção de políticas públicas que dialoguem com as razões dos jovens que se encontram nessa situação. O grande ganho da pesquisa da geração N é construir uma ideia de cartografia, pois a cartografia mostra aspectos subjetivos, aspectos das razões, compreensões, posições de cada jovem, mostrando o que os próprios jovens apontam como outras possibilidades de investimentos de políticas públicas. O que eles estão fazendo? Como estão construindo a vida deles? Quais habilidades eles têm? Como eles entendem o que é o trabalho? 

Instituto OCA: Quais foram os principais desafios do trabalho de campo durante a pesquisa? 

Glória Diógenes: Os desafios do trabalho de campo foram muito relativos à abordagem. Primeiro pela diferença entre meninos e meninas. A maior parte dessa geração N é de meninas, elas estariam muito mais em casa, porque estavam fora da escola e do trabalho. E a própria desigualdade de direitos na relação de gênero mostrou que essas meninas saíam da escola ou por gravidez precoce ou para ajudar pessoas da família. E os meninos, a maioria estaria na rua, de forma arredia, com muita desconfiança em relação a agentes públicos, embora a pesquisa não tivesse nada a ver com uma iniciativa de uma instituição pública. Foi encomendada pelo Instituto Dragão do Mar, mas tivemos liberdade (o Lajus e o OCA) para a pesquisa ser independente, livre, neutra no sentido de fidedigna, que os dados expressassem a realidade. Mas o acesso a esses meninos que estavam nas ruas, que muitas vezes se sentem reprimidos ou agredidos pelos agentes de segurança pública, por políticas de segurança pública. Até mesmo se sentiam alijados de políticas governamentais de juventude. E foi muito difícil o acesso por estarmos diante de paisagens de pesquisa completamente diferenciada em relação aos atores, ao gênero masculino e feminino. E se tratava de um bairro onde havia ações de facções. Então muitas vezes as pesquisadoras tiveram que sair de campo. Os lugares todos mapeados com senhas ou necessidade de mediadores para livre circulação. Eu diria que foi uma pesquisa guerreira, que ultrapassou todas essas cancelas pela necessidade de escuta, pelo compromisso com a escuta desses atores e dessas meninas que tantas vezes são excluídas e se excluem, são invisibilizados e muitas vezes entram em pequenos grupos como forma de se proteger e acabam adiando suas expectativas e necessidades e até abrindo mão de seus direitos.

Instituto OCA: A pesquisa mostra que jovens nem-nem-nem estão mais vulneráveis à violência. Como romper o desenho tradicional (e um tanto genérico) de políticas para as juventudes que temos atualmente?

Glória Diógenes: A falta de oportunidades de espaços com sentidos, que não sejam só espaços de guetos de pequenas configurações de sociabilidade, de auto-proteção que eles criam entre pares, a própria dificuldade de acesso à escola. As dificuldades vão se multiplicando. Elas são como um jogo em que se aperta um botão e se multiplica ao infinito. E esse conjunto de dificuldades vai cada vez mais afastando. Por exemplo, esses jovens muitas vezes não conseguem fazer pequenas contas numéricas, cálculos aritméticos simples, não conseguem fazer um currículo, encarar uma entrevista de emprego, argumentar de uma forma dentro dos ditames do que seja um mundo normativo, do que deveria ser dito. Então para que a gente possa contribuir para o desenvolvimento dessas populações mais vulneráveis nessa pesquisa, romper esse desenho tradicional e genérico, seria necessário mesmo que essas ações, essas pesquisas e também de movimentos que sejam dos próprios bairros, lá no próprio Bom Jardim existem várias iniciativas que não são governamentais, eles têm uma potência que ecoa positivamente para os jovens. E as políticas públicas, ao invés de proporem ações a partir de sua visão do que deveria ser feito, passem a mapear o que os jovens já fazem em termos de pequenas atividades profissionais, artísticas. Mapear o que se tem e trazer para as políticas públicas para que essa via não seja vertical e hierarquizada. Mapear o que a juventude quer, isso seria até uma economia de recursos das políticas públicas, porque haveria um suporte de financiamento, um apoio para o que já é feito, em vez de propor algo que não está dentro do universo juvenil. Essa pesquisa mostra que muita coisa está sendo feita, muita coisa existe. E que o poder público possa olhar para isso e potencializar essas ações.

Instituto OCA: De acordo com dados do IBGE, ainda é mais expressivo o número de mulheres sem qualquer ocupação em relação aos jovens do sexo masculino. Como o gênero pode ampliar ainda mais esse contexto de vulnerabilidades?

Glória Diógenes: As políticas públicas são muito generalistas, universalistas. Elas homogenizam situações que têm nuances. E é próprio da política pública não atuar dentro de situações específicas e singulares, dentro de contextos de vida, de gênero, de orientação sexual. Mais do que nunca, essa situação das meninas na pesquisa realizada por nós mostra a necessidade de uma política pública que possa se voltar para dinâmicas de vida, situações psicossociais, contextos de gênero, de sexualidade, de situação familiar, de trajetória de vida diferenciada. Isso também é algo que a geração N vai mostrando que é muito necessário, capacitar os educadores sociais, os agentes públicos responsáveis pela atuação e produção de projetos. Porque se gasta muito dinheiro em ações que às vezes são tão generalistas que não batem ou conseguem afetar, sensibilizar ou serem práticas na vida das juventudes. Nós não entendemos profissionalização como algo separado de uma visão de promoção de direitos sociais e políticos, nada está separado. Ela precisa ser voltada para o exercício da cidadania, o direito à cidade, à vida, ao acesso às políticas públicas. E a geração N revela um mapa eloquente que mostra essa diversidade, e qualquer política pública que se volte para ele, para essa pesquisa terá os atalhos, rastros e caminhos para que se possa atingir essas meninas que muitas vezes tiveram que abrir mão de suas próprias vidas.

Instituto OCA: Pesquisas como essa mostram a importância de parcerias de instituições que estudam as juventudes. Há perspectiva de trabalhos futuros envolvendo o LAJUS e o Instituto OCA?

Glória Diógenes: Eu me sinto muito feliz e todos nós do LAJUS por estarmos nas pesquisas junto com o OCA, nas lutas que o OCA se envolve, eu acho que essa união de forças com a universidade e o Instituto OCA traduz a relevância do tema “cada vida importa”. A nossa ideia de pesquisa, tanto LAJUS como OCA, não é de pesquisa por pesquisa, mas sim de que a pesquisa é uma operacionalização e não um dado apenas. Ela é uma força de vida, ela tem ação, o poder e o compromisso de agir. Nós fazemos pesquisa para intervir no mundo social, para dar força e visibilidade às lutas existentes, às demandas existentes, às vidas das pessoas, ao que as pessoas esperam de suas vidas. E poder orientar políticas públicas, criar elos de comunicação entre políticas públicas e mundos de vida. Essas alianças são extremamente necessárias para que a universidade exerça seu papel de traduzir e colocar em prática uma ciência a favor da vida e comprometida com os direitos. Pesquisar para transformar. E agora estamos nos integrando em outro projeto, o Fortaleza Cromática, que se trata de dar pulsão de vida à criação, à transformação de iniciativas de juventudes da periferia que estão, a partir de suas ações, reinventando a cidade, recriando possibilidades. E mostrar a partir disso o potencial e inventividade dessa juventude das periferias. 

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